CIVISMO NA RUA, PRECISA-SE!

Um "semi conto" internacional em terras de Moçambique.
E chamo-lhe "semi conto" porque a par da fantasia, muitas são as verdades desta história. Vamos por isso, inventar-lhes os nomes, mas não as suas acções.

A rua do Rio Raraga fica para os lados das escolas internacionais desta cidade curiosa. Devia por isso ser uma rua de prestigio, mas a quantidade de impropérios de que foi vítima ao longo dos tempos, marcou-a para a eternidade. 

Hoje, está alcatroada, mais bonita, mas nem sempre assim foi. Há alguns anos, poucos ao que parece, os buracos, as areias e as lombas enfeitavam-na sem glória. Se cada buraco contasse as palavras feias com que foi preenchido! Se o areal revelasse cada pontapé na gramática! Se cada lomba se queixasse!

Protestos, reclamações, indignações e por fim consensos, fizeram com que ficasse de rosto lavado e um pouco mais digna da educação que por aquelas bandas se tenta transmitir.

Bruno é um rapaz igual a muitos, descendente luso, numa idade anormal e num tempo parvo. A testosterona dos seus 15 anos ilude-o e o estatuto do pai, confere-lhe a arrogância. 

Biédge é francês. O seu ar pacato e educado assenta-lhe como uma luva no seu porte de adolescente.

Bill é americano e pronto! Despenteado, despreocupado, destrambelhado como só os americanos sabem ser. Os seus 15 anos são ainda imaturos e as graçolas ocupam 80% do seu cérebro. A outra parte está destinada ao basquetebol. Sim, que isto de encestar também exige inteligência!. 

Todos eles andam nas escolas daquela rua. E esta rua dá-lhes os bons dias todas as alvoradas da semana, embora a horas diferentes. 

Bruno é o primeiro a chegar. Ainda com o olhar ensonado das 7h, sai do carrão do pai, com o elástico das cuecas Hugo Boss a espreitar. As calças, essas, enrodilham-se em cima dos enormes ténis de marca, sempre com os atacadores por apertar. O estilo tem as suas regras! Na escola portuguesa há uniforme, o que impede a rapaziada de ostentar ainda mais as marcas da burguesia. Se as calças são do povo, as cuecas de marca têm de ser mostradas! E a franja à "veleiro" tem de estar penteada, parecendo toldar-lhe ainda mais a inteligência. De mochila ao ombro, vai entrando sem vontade de cumprimentar e muito menos de aprender. As "damas tugas" são a única chama da escola. 

Bill é o segundo a passar. A sua escola é a última lá da rua. O todo o terreno, propriedade da Nações Unidas e conduzido pelo motorista local, leva-o a ele mais os dois Labradores pretos. Bill vai para a escola americana, os cães vão passear na praia. Com as suas bermudas desbotadas e a t-shirt XL, passa o grande portão e, aquele "Hi!" dirigido aos guardas, é chapa cinco. E às cinco tem a desforra do jogo de basquetebol na escola internacional. Isso sim, vai ser "cool".

Biédge passa às 7h45 "pile". Na família francesa os atrasos são mal tolerados e o "Monsieur le Directeur", prostrado à entrada da escola todas as manhãs, também não perdoa. Com a sua roupa informal e aprumada desce da Toyota Hiace, conduzida pelo "Chauffeur de la famille". Para ele, as cuecas são tão importantes como as calças, e por isso ocupam o seu devido lugar. "Bonjour" e entra no portão da escola com passo firme, espicaçando o irmão mais novo ainda adormecido. Mais velho cinco anos que o seu irmão de dez, incumbe-lhe dar o exemplo. E a França espera-o com boas notas.

Mas as vivências diárias e escolares destes alunos pouco interessam para este conto. Passemos ao ponto!

Chegadas as quartas feiras, as "mercredi", as "wednesday", a Rua do Rio Raraga transforma-se como que por magia. As 16 horas são a hora da abóbora! Pela rua do Rio Raraga todos querem passar, despachar-se e portugueses, franceses e americanos não se entendem. 

Já sem os cães a arfar para o seu pescoço, Bill desespera.
"Com'on man! What's going on? What´s the problem?"

A fila interminável de veículos que preenchem a dita rua não deixa andar o seu todo o terreno. Lá na frente os portugueses fazem aquelas manobras inteligentes que atravancam a vida dos outros. E um dos empatas é o Range Rover da Dª Beatriz, mãe do Bruno. Sem pensar em estacionar e muito menos em encostar, pára na via e apita três vezes. Bruno, que ainda está dentro dos portões da escola, acaba de beijar as miúdas e faz sinal à mãe. A mensagem foi recebida, mas o sinal é de: "aguenta aí um coche!" Atrás do "jeepão" já uma fila se forma. Ao lado, a outra fila está parada por causa dos que lá na frente também estorvam. No entanto, há os filhos dos outros e nas outras escolas, que ainda estão por recolher! Mas ela, entope a Nyerere e atrofia o cruzamento. Sem se importar, retoca o baton e compõe o cabelo, pois a sua aparência é bem mais importante que o estorvo dos outros.

"Mais, qu'est-ce qu'il y a?"
A pergunta é de Bernard, já incomodado com o calor dentro da Toyota. 
Biédge limita-se a responder: "Ce sont les mercredis!"

"F****** Portuguese, man!" diz Bill já cansado de olhar o seu swatch. A desforra está prestes a começar e ele ainda nem se equipou.

"J'ai faim!", reclama Bernard.
"Mange mon sandwich". Acalma-o Biédge.
"Si la police..!" Sonha Biédge, vagueando noutra realidade. Mas dentro da sua cabeça, Biédge vai matando o tempo a pensar no projecto a apresentar "jeudi prochain".

Acabados os beijos, os "OK's", os "Yhas!", os "fixes", os "liga-me!", os "maningue", Bruno entra finalmente no exagerado fresco da bomba da mãe. Para esta não há beijo, pois esborratava a pintura!

E agora? Atravancou e atravancou-se! Nem para a frente, nem para trás. E quantos bem estacionados estão, que encurralados também ficaram!?

*****

Este é o cenário real das quartas feitas às 16h e das sextas feiras às 12h30 na rua do Rio Raraga.

A falta de civismo e o desrespeito pelo próximo por parte dos meus patrícios, dos motoristas dos meus patrícios e dos empregados dos meus patrícios é algo que me choca, revolta e envergonha. Também há os outros, que não tendo costela portuguesa, têm lá os seus filhos e também revelam muita insensibilidade! Mas esses....!

O certo é que todos estacionam como querem e onde querem. Ignoram diariamente as regras de trânsito e de segurança. Têm a presunção de achar que o seu tempo é mais importante que o dos outros, que as suas vidas são superiores às dos outros, que as suas vontades são lei. 

Quem me conhece sabe que idolatro o meu país e o meu povo, mas infelizmente chego à conclusão de que o tempo dos grandes e honrosos portugueses parece já ter terminado.

Os impropérios desferidos aos buracos de outrora da rua do Rio Raraga, assentam na perfeição a quem hoje deseduca mesmo às portas da escola. Civismo e educação deveriam ser disciplinas obrigatórias em todas as escolas.

CSD

Comentários

  1. Pois é,à porta da minha escola passa-se precisamente a mesma coisa...
    Um forte abraço

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  2. Olá!

    Tanto cá como aí, parece que ser português já não é olhar para o que está além, mas sim e cada vez mais, para o seu próprio umbigo...

    Acabei de chegar e já estou a adorar ler-te!

    Beijinhos

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  3. Obrigada. Infelizmente também tenho de relatar situações reais que em nada engrandecem o nosso povo. Beijinhos

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