(DES)ALVORADA

Outro conto moçambicano.

Cássia estava à espera há horas, sim, que os minutos da alvorada sabem a horas no corpo ainda adormecido. A madrugada avançava em passos largos e nem sinal de transporte. Atrás, ao lado, à frente, acotevelando-se sem saber porquê, todos aguardavam aquela lata velha a que chamam Chapa 100. São muitos os que esperam. Nada é mais desejado do que o chapeiro, e às primeiras horas da madrugada, até é pecado desejar um homem assim! Mas ele fazia-se esperar. Ele e todos os daquela rota. Com a viagem garantida e mais houvesse, lá apareceu o transporte com a linha marcada: Benfica - Museu.

Assim começou a primeira luta, a primeira guerra, o salve-se quem puder do dia. A valentia, a astúcia e o desenrascanso foram os grandes vencedores. Entraram no chapa os mais rápidos, os mais batidos e matulões.  Os outros mudaram de perna e obrigaram-se a esperar na rua pelo seguinte.

O cobrador do chapa tentou fechar a porta que já de si empenada, não obedeceu. O rabo de um, mais a perna de outro, o cotovelo do terceiro e a saca com a venda, impediam o seu fecho. Segurando a porta no limite, avançou-se. A estrada até nem é má, mas a carroçaria já viu melhores dias. O alcatrão mostra-se a passar, as janelas já tiveram vidros, os bancos cambos forçam o esqueleto e os 15 lugares disponíveis levam já 25 seres. Sentados nos colos de todos e de nenhuns, vão-se fazendo ao destino. Em Maputo não pode haver vergonha de sentar o intimo no desconhecido. Isso são purezas de quem não necessita. Cássia olhou o relógio. Atrasada já estava e nada podia fazer. A patroa não ia gostar. Agora só mesmo o equilíbrio para não tombar era sua preocupação. Mais atrasados estariam aqueles, que sem sorte, ficaram a vê-la partir. 

Aldo é outro alvorador. Na universidade a estudar Direito, salta para a caixa aberta de um inventado transporte semi colectivo. Baixa - Costa do Sol é o destino. Agarra-se conforme pode.  Ele e os outros 32 valentes passageiros. Ao seu lado vai a mamana Vitória com o filho na capulana, mais o Machel jornaleiro, mais o Dorival motorista do molungo, mais o Bilá cozinheiro de patrão monhé, mais o Báchiro mainato, mais a Ema auxiliar escolar, mais a Aíssa vendedora, e outros que sem rótulo, se fazem à vida.  Solavancando estrada fora, agarram-se à sorte de bem chegar. E rezam. Sol, calor e odor não faltam nos corpos juntos e cadenciados.   

Na estrada há mais quem queira entrar, mas sem sorte. Os mais espertos apanham do lado contrário. Na volta no chapa, já lá estão dentro! Cassamo ainda está lá, no primeiro ponto, mas já não devia. Chocalhando e chiando lá vem o Baixa - Praça dos Combatentes. Este interessa e até é machimbombo e até leva mais. A sorte estava com ele. Sentado nos estofos "made in India", vai melhor e mais seguro.  Maomede,  seu companheiro de viagem, trás a Verdade, jornal semanário das sextas e com ele as verdades moçambicanas. Os seus trejeitos reprovadores iniciam conversa.

Maomede: "Isto está maningue male!"
Cassamo: "É pro causa di chapa. Há falta di chapa e as pissoa é qui sofrem".
Maomede: "Não é!? Vejam lá!"     


Blinda, que seguia no banco da frente achou que devia ajudar na conversa dos homens.
"Nós as mulheres temos de lutar com homens forte para entrar. E até aleijar e até cair!"


Os homens, sentido-se espicaçados com o discurso directo, ignoraram a mulher. Aquelas palavras não mereciam resposta.


Cassamo: "E o custo da corrida, pá? 7 conto e quinhento é muito pra esta condição!"
Maomede: "E quando o chapeiro faz encurto de rota?. É vergonha!"
Cassamo: Mas o pior são os cobradores motorista! Como pode conduzir sem ir na escola? E depois há acidentes, claro!"
Maomede: "Siiiim, a polícia devia ver estas coisa, mas eles próprio também ganham."
Blinda: E devia prender quem não deixa entrar pissoa doente e dificiente. Só entra quem tem força! Não é justo."


Mais um tiro certeiro ficou sem resposta!


Maomede: "Mas agora a polícia municipal está lá pra ver. Tenho confiança na mudança".  E vão chegar mais machimbombo. Vai melhorar!"
Cassamo: "Oxalá amigo, oxalá".


Paragem após paragem, lá entraram mais 30 ou os que conseguiram. O ar é pesado, os corpos estão massacrados e os semblantes cansados. E ainda o dia vai começando!

Uns mais atrasados que outros, todos vão chegando ao seu destino. Cansados desta primeira luta, poucas são as forças que restam para a segunda. Os meios de transporte são poucos para escoar tanto povo. E o povo insurge-se e reclama e protesta e refila, mas "fazer o quê?" Parece um destino traçado, um carma, uma profecia sem fim.

Desalvorada, Cássia salta do chapa, transpirada, saturada, e corre Avenida 24 de Julho abaixo. Só importa chegar. Aldo sem deixar parar, salta também ele e corre Julius Nyerere acima, para o destino que lhe dará vida melhor. Cassamo e Maomede saem na praça para mais um dia de combate. Também eles combatentes diários, sentem no rosto a aragem fresca da manhã. Um é sapateiro, outro tabaqueiro. E Belinda? Essa é tagarela, mulher de conversa e pedinchice. Gosta de andar perdida nos cruzamentos da cidade a pedir àqueles que podem, o sustento do seu dia.

E o regresso a casa será outra batalha pela dignidade humana.

CSD


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