E O SONHO SEM CHINELO?

Passaram-se seis meses e a familia do irmão José, aquela cujo sonho de um melhor calçado alimentava a vida, continuou a sua luta. Palmilhando as estradas da cidade mãe, levantando-se a cada alvorada, todos eles partiam diariamente desta feita para destinos diferentes. A vida dá voltas, mesmo com chinelo no pé.

O verão acabou e com ele as chuvadas que fazem dos chinelos um inimigo. As terras alagadas, as ruas sujas e os rios revoltos que fustigam as falanges, finalmente começaram a secar. Mas o inverno que agora chegou, não é amigo melhor. As temperaturas mais frescas e a humidade menos sentida fazem destes ossos descobertos um alvo prefeito para as frieiras. O sonho era maior no inverno.

Com os seus clientes bem definidos, o irmão José vendia a cada dia o que os outros necessitavam de comprar. O negócio da venda estava-lhe no sangue e era isso que mais gostava de fazer. O pão e a salsicha rosada era mata bicho sempre desejado. Os ovos cozidos agora também vinham consigo. Mas o irmão José por vezes trazia novidade e nesses dias, a receita aumentava. O biscoito tinha saída e quando a mãe Janete tinha a mão bem medida, não havia quem recusasse um miminho para os seus estômagos pouco habituados.   

"Hoje tlem novidade?" perguntava o chinês encarregado da obra, olhando de esguelha a caixa adicional.

O irmão José destapando com orgulho a caixa plástica, mostrava as relíquias docinhas da mãe Janete.

"Tem e são dos verdadeiros!", respondia o irmão José, contente por agradar.

"Dá-la tlês". Dizia o chinês já com o suco das papilas a espreitar na boca cravada de dentes pequenos. Conhecia bem o gostinho daqueles biscoitos!

"Se quiseres arranjo-te uma lata cheia dos bons, em troca dessas botas!" 

Este era o lado negociador do irmão José. Mesmo usadas, satisfaziam bem o seu sonho! 
O chinês não esperava tal proposta. Olhou para as botas, olhou para o irmão José, olhou para a caixa plástica. Regalar-se com uma lata cheia daqueles biscoitos parecia um sonho! Mas as botas... essas faziam-lhe falta! Mas os biscoitos valiam o negócio. Como encarregado de obra bem que podia pedir um par novo! 

"Ok, amanhã trlago-te as botas! Não esquleças os biscoito".

O irmão José não cabia em si de contente. Finalmente teria as botas! Aquelas do seu sonho!
E as moedas também foram enchendo de volume os bolsos do irmão José. Sabia que a novidade dava dinheiro e era por aí que tinha de investir. Assim, já podia pensar noutro sonho.  

Ainda a manhã estava a despertar, já o irmão Joaquim passeava o Bóris e a  Dóris em plena avenida. Perdendo-se um dia nos seus pensamentos decidiu que a venda não lhe estava destinada. Ao contrário do irmão José, o falatório não era o seu forte e por isso agarrou a oportunidade surgida. Agora estava empregado em casa de molungo e os caninos eram a sua responsabilidade. Estes Pastores era finos! Em troca de segurança recebiam tratamentos e mimos que ele próprio desconhecia. Os silenciosos quilómetros matinais diários destinados ao esticar de pernas dos seus protegidos, colocavam-lhe as ideias em dia, e passada a passada, organizava o seu sonho de tratador. O irmão Joaquim sabia que a dedicação era o passaporte para o sucesso. Quem trata bem do fiel amigo, agrada ao seu dono! Com o primeiro ordenado compraria aqueles ténis que amansariam os quilómetros madrugadores e realizariam o seu sonho de teenager. E até já sabia bem a cor que eles teriam: vermelho como o seu benfica!

A irmã Joana continuava a bater perna pela cidade. Sempre com alegria no rosto e passada achinelada, levava à cabeça a fruta da época. Essa, a época, não estava para grandes aventuras mas a irmã Joana não se podia queixar. O seu porte airoso, as suas formas redondas e a sua pela negramente brilhante conquistavam clientes, que mesmo sem fome, metiam conversa só para a verem sorrir. Gostava desta vida, gostava de ser assim, gostava de si. Nos seus sonhos imaginava-se passeando com porte de senhora e sandálias elegantes. E era assim que percorria Maputo: molunga e chique. O sonho e a realidade eram diferentes mas não no pensamento de Joana. O seu sonho deixara de o ser, porque era-o todos os dias do ano. 

A mãe Janete gostava mais de a ver por perto. Queria ajuda na venda. Mas era difícil prendê-la, bem o sabia. Nos seus tempos áureos, também esta Janete agora pesada e roliça espalhava o seu charme pela cidade para deleite dos homens citadinos. De alguidar em riste vendia fruta, legumes e simpatia. Foi assim que conheceu o pai Júlio. A conversa ligeira tocou ambos os corações e a união foi destino. Mas agora com o mercado em obras, a venda estava esquiva e a mãe Janete aliou-se à prima Julieta para maior oferta. Os legumes da mãe Janete ladeavam agora com as frutas e as especiarias da prima Julieta. A ampliação do negócio sempre fora um sonho da mãe Janete e uma ambição da prima Julieta. Sentadas à espera do negócio, sonhavam com dias melhores e pés mais aliviados.

O pai Júlio, esse continuava a matar o vício daqueles que o têm e a vender crédito no cruzamento habitual. A vida continuava igual e o sonho por realizar. Aquelas botas mágicas, aquelas do Ogre, era coisa de filmes bem o sabia, mas continuava a sonhar com uma maior presença na vida dos filhos, na vida familiar. Mas agora a seu lado estava o filho Jaime. Já com corpo de moço mas cabeça de menino, segurava bem a sua verga com os amendoins torrados e bem fresquinhos.

"Amendoim, senhora? Está fresquinho."  

"Hoje não preciso, obrigada."

"Vá lá senhora, é para dar sorte! É a primeira venda do dia".

A senhora olhou com curiosidade aquela criança, e sem saber como, comprou cinquenta meticais daquele fruto seco.  O pai Júlio que ao longe assistia ao despontar do filho, sorriu de orgulho e de esperança. Assim sim, tínhamos vendedor! O colete de crédito da concorrência aumentava os meticais. A  maior oferta gera dinheiro.

Os outros dois filhos, ainda pequenos o suficiente para receberem sem trabalhar, estariam agora na escola. O irmão Jorge e a irmã Jamila aprendiam na escola do bairro as letras que a professora sabia e conseguia ensinar. Numa turma de demasiados, cada um lutava pela sua cultura. Ouvir era fácil, apreender era outra conversa. Com as cabeças ainda cruas de responsabilidade, era na escola que o pai Júlio depositava as esperanças de vir a ter filhos importantes. Quem sabe, médicos? Ou melhor ainda, políticos? Tinha de esperar para ver crescer. E eles, os putos, teriam de se fazer à vida se queriam vida melhor. 

E no final do dia, todos reunidos de volta da janta, contavam suas vivências e faziam projectos para um futuro melhor. O sonho continuava para alguns. Os outros, já nem pensavam nele. O inverno daria lugar ao verão e às mesmas aventuras de sempre. E com o verão viria o Natal. E no Natal receberiam a força de Deus e a boa vontade das senhoras voluntárias. A política de mão estendida aqui é natural e necessária. A vergonha e o acanhamento não moram nestas gentes. E se Deus quiser, a mãe Janete teria este ano no seu chinelo velho, aqueles bons e confortáveis tão sonhados.

Por vezes é a própria vida que dá voltas ao sonho.

CSD

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