A INFELIZ REALIDADE

Aconteceu.

Lavando o chão, ela fingia cuidar da minha casa como sendo sua. Passando a minha roupa, iludia-me com o seu carinho. Comendo a minha comida, aparentava gratidão. Confiando o meu ninho a uma falsa guardiã, eu saía descansada, batendo perna todos os dias. Mas a realidade veio mostrar outra faceta. A verdade estava ainda por revelar.

Sempre com modéstia e um olhar de submissão, ela chegava todas as manhãs a horas tardias, desculpando-se com a falta de transporte. Uma hora era, no mínimo, o seu atraso diário. A sua lentidão na lide doméstica era enervante, rotineira e sem iniciativa. Limpava o limpo e escovava o já escovado, todos os dias da semana. A sua atitude sempre silenciosa, ocultava grande talento nas palavras e nas emoções. O seu passo quase flutuante,  fazia-nos esquecer a sua presença. Eu tudo aceitava.

Com grande habilidade e na minha ausência fixa, ia contudo delapidando o meu património. Todos os dias a minha carteira sentia as mão negras, intrusas. Achando que eu não daria pela falta, foi durante uma semana enchendo os seus bolsos com o alheio. Um terço do ordenado hoje, um sexto amanhã, outro terço depois entravam no seu bolso, aumentando de forma vergonhosa o seu salário. E muitos foram os terços e os sextos que foram desaparecendo do meu pecúlio ao longo de um ano e que por não desconfiar, aceitava-o como estando gasto. 

A minha desconfiança levou à descoberta. Montada a cilada, não houve como duvidar. Uma vez mais e sem qualquer remorso na sua consciência suja, as suas mãos arrebanharam as notas de quinhentos meticais propositadamente colocadas lá, no local que ela tão bem conhecia e que havia descoberto. Mais um terço desapareceu do meu pecúlio. Confrontada com o roubo, o seu consciente accionou a actriz que nela havia e o teatro ficou montado. Com evocações a Deus jurou sem piedade e sem qualquer nervosismo que nunca o tinha feito. Durante demasiado tempo a mentira pairou no ar sem vacilar, sem se arrepender. 

Mas não havia como negar. Não podia ser mais ninguém. Perante tamanha actuação, limitei-me a indicar-lhe o caminho da rua.

Foi duro sentir a ingratidão daquela criatura de Deus. Foi duro reconhecer que apesar de a ter tratado sempre com respeito e consideração, apesar de lhe ter perdoado algumas inconveniências e disparates, apesar de lhe ter dado uma segunda oportunidade quando já não o merecia, ela roubou, mentiu e traiu a minha confiança. 

O suposto arrependimento fe-la voltar no dia seguinte com a mesma encenação perfeita, desta feita usando os seus filhos como moeda de justificação. Mas a cicatriz que ela deixou no meu coração, impediu-me de voltar a receber na casa que lhe confiei, tamanha falsidade humana. 

Desta peça teatral retirarei uma das maiores lições de vida: confiar, desconfiando sempre.

CSD

Comentários

  1. Infelizmente são muito poucas as pessoas em que confiamos.
    Mais uma lição para a vida.
    Beijinhos

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares