O SONHO SEM CHINELO

Um conto sobre a vida moçambicana.


Pingava da goteira inventada. Das chapas de zinco vinha o despertar natural da intempérie. Mais um dia começava. Os primeiros raios da aurora obrigavam a mais um esforço para sobreviver.  O irmão José, rodou as pernas, esfregou os olhos brancos e coçou o caracol preto cerrado. Na esteira ao lado, os irmão putos ainda dormiam. Esses só vão para a escola às 10h30. Lá fora, o crepitar do fogo aquecia a água para o chá. A mãe Janete, que cedo madrugava, já tinha ido à carrinha, ao fundo do caminho, buscar a saca de pão e os ovos para cozer. A salsicha foi entretanto grelhada. O dia podia começar.

Fora da barraca, de caneca plástica em punho, já com pasta na escova, o irmão José esfregou com vigor os seus dentes imaculadamente brancos. Com a outra mão passava água na face, cabeça e pescoço limpando vestígios de sono. A espuma cuspida dava cor branca à terra vermelha e encharcada.

“Alichene mamã”
“Alichene, meu filho”

Sem mais o que querer saber, o irmão José pegou na grade preta, outrora de Coca-cola, e soergueu-a à altura dos ombros. Lá dentro e guardado num saco plástico preto, pão grande e bicudo. A outra mão, também obrigada a trabalhar, pegou numa lata com salsichas pequenas e gordurentas. À cintura a catana, preciosa ferramenta de trabalho.

As pingas da chuva nocturna amansavam mas lá na estrada corria um rio revolto de entulho e pedras. Mais uma travessia se avizinhava difícil. O sonho do irmão José são botas de caminhada que viu um dia nos pés de um estrangeiro. Com elas teria sempre os seus pés protegidos de água, terra e golpes. Quem sabe um dia.

“Itavonana, mamã.”

Ainda de madrugada, cabeça erguida, chinelo no pé, o irmão José saiu para a vida. A carga preciosa garantia alguns trocos. Sem dinheiro para chapa, o caminho fez-se a pé, com uma bucha de pão com manteiga na mão. O destino seria hoje, a frente das obras do novo condomínio que se erguia na Av. Julius Nyerere.

Duas hora a chinelar e o irmão José chegou ao destino. Não vai faltar quem queira já matabichar. 

“Hoyo-hoyo” disse-lhe um chinês, trabalhador das obras.
Brixile” respondeu o irmão José de forma educada. Qualquer cliente tem de ser respeitado. Assim se cativam as pessoas.

Catana em punho e numa mestria desenvolta, o irmão José abriu o primeiro pão. Picando com o bico da catana a gorda salsicha, ela gemeu gordura para cima do pão já aberto. Mais mestria e estava ela também cortada e dispersa por todo o pão.

“I malé muni?” Bem se via que aquele cliente era novo por estas terras.
“10 conto” respondeu o irmão José.

A primeira moeda dourada e prateada caiu no bolso vazio das calças de ganga gastas pela vida.

Khanimambo”, agradecimento sobejamente difundido.
Khanimambo” respondeu o irmão José.

Pouco a pouco os clientes foram chegando. E o irmão Joaquim também. Desta feita eram ovos que vinham na sua palete, que vinha ao ombro, que vinha para ser vendida.

Assentando arraiais ao lado do irmão mais velho, que a manhã não estava para grandes caminhadas, o irmão Joaquim tirou do bolso a lata do sal. Tudo estava preparado.

Outro cliente se aproximou. Desta feita um molungo.
Bom dia, dá cá um ovo”.

O irmão Joaquim, ainda criança e pouco habituado a lidar com patrão branco, estendeu timidamente a palete dos ovos. O patrão, engenheiro e supervisor da obra ao lado, olhou com superioridade e escolheu o maior. Na mão, já os 5 meticais brilhavam. O irmão Joaquim não puxou a moeda. Estendeu a sua mão negra e foi a dita que rolou para a sua palma.  Depois entrou em acção a lata de sal. Ovo cozinho sem sal fica desenxabido. Já com o ovo descascado e as ditas a rolar pelo chão, foi o Sr. Engenheiro que, após a primeira mordidela, estendeu o ovo para nele serem depositadas as bolinhas mágicas de sabor.   

“Tchau”
“Obrigado Patrão”, respondeu o irmão José, que o irmão Joaquim não teve destreza.

Por volta das 11h30 chega a fome aos estômagos dos trabalhadores locais daquela obra. De capacete debaixo do braço, atravessam a rua e vêm cheirar a salsicha rosada. Um atrás do outro, vão deixando meticais nas calças de um e de outro irmão.   

Mas a goela tem sede e a salsicha puxa a bebida. O quente do dia pede líquidos. Felizmente para a classe operária, esta cadeia alimentar está bem estruturada. O Victor, homem batido nestas andanças também escolheu este local para ganhar uns trocos. Com o seu carrinho frigorifico repleto de cocas-colas e fantas e refrescos, vai fazendo as delícias destes trabalhadores.  A coca cola, para quem aprecia, tem aqui um saber melhor. O segredo da sua composição africana é desconhecido na Europa.

A meio da manhã passa a irmã Joana. À cabeça o alguidar com a mandioca e a laranja. Não se queda por lá. O seu destino é vaguear pela cidade, vendo passar o movimento. O seus chinelos gastos fazem quilómetros ao longo das avenidas largas da Cidade das Acácias. A capulana tapa as ancas roliças iguais às da mãe. A sua idade vai soltando piropos dos mais e menos jovens que se cruzam, caminhando. Passa pelo mercado e visita a mãe. A mãe está na venda. Os pés descalços gritam por conforto. Chinelos sim que é o que ela mais gosta, mas daqueles, dos ortopédicos, como já viu na montra da farmácia.

A banca mostra o que a machamba dá: coisas verdes e algumas papaias. Couve, folha de abóbora e folha de feijão nhemba estão entre as variedades. Neste solo fértil tudo vinga. A irmã Joana, cansada de caminhar poisa o alguidar e avia as senhoras que entretanto entraram à procura do mais fresco. As sandálias europeias e elegantes atraem os olhos vivos de Joana. Como os seus pés ficariam lindos no alto daqueles saltos!
A linguagem escolhida pelas senhoras brancas para a abordagem é a da casa, que é sempre engraçada para quem não é obrigado a falar. Changana não é fácil e as molungas brancas tiram gargalhadas às vendedeiras.

“Alichene, vá hánha?” diz a branca mais afoita.
Ni kuátzi, khanimambo”.

O resto é conversa portuguesa, que o changana não dá para mais.  

E o Pai Júlio? Esse vende tabaco num cruzamento com a 24 de Julho. Vestido tem a bata da MCel porque o tabaco já se vendeu mais. As mensagens dissuasoras por todo o lado têm feito estragos nas bolsas de quem vende e melhorias nos pulmões de quem obedece.

No outro lado,  lá na casa outrora vazia, chega o resto dos irmãos, ainda em época de escola. O irmão Jaime, o irmão Jorge e irmã Jamila são em escadinha. Com os seus uniformes azuis e sacola às costas chegam a casa ainda com folia. A vizinha Amélia deita um olho e impõe respeito. Na caçarola está a xima e o caril feito pela irmã Joana, ainda sem o raiar do sol. Servem-se com vontade pois a irmã tem mão para a cozinha. O coco apanhado pelo longo caminho até casa serve para beber e fazer caril mais logo.

A tarde destes putos é passada por casa, num vai e vem entre as barracas vizinhas e os amigos. Brincam com o que podem e encontram, e assim vão sonhando com dias de glória. Os desenhos feitos na terra vermelha com lápis de pau, mostram meninos com sapatos de pele e sola de coiro. Alguns sonham com sapatilhas de marca. Mas nos seus pés estão os chinelos dos pés crescidos dos irmãos mais velhos. 

Para o lanche há pouco quem compre. O irmão José começa a caminhar para casa. O irmão Joaquim segue-o, sempre vai imitando o irmão mais velho e aperfeiçoando o seu estilo gingão. Boné com pala para trás, calças de cintura descida e o sonho de ter uns ténis daqueles: grandes e garridos. Mas por agora é o chinelo de dedo que protege os pés ainda frágeis de adolescente. 

A filha Joana mais a mãe Janete também arrumam suas vendas e rumam a casa. Como no chapa não têm lugar, vão chinelando rua abaixo, recordando as conversas atrás da banca. As molungas salvaram o dia morto da venda. Enrolado na ponta da capulana estão as notas e moedas que o paleio deu. Quem as vê pouca diferença lhes dá. As formas da mãe Janete ainda lá estão e o passo apressado é de difícil acompanhar. Do alto dos seus 37 anos, ainda está para as curvas.  A filha Joana esforça-se por acompanhar a agilidade maternal e na sua inconsciência sente orgulho da progenitora.

O irmão José chega primeiro. A carga leve é bom indício. O dia foi jeitoso em meticais e conversa. A bola é sempre assunto e nunca acaba. As apostas ficaram feitas para os jogo de fim de semana que está á porta. O irmão Joaquim é mais calado. Seus olhos observam tudo e tudo registam. Um dia ainda será alguém.    

O Pai Júlio ainda tem pela frente uma noite grande. È de noite que mais se fuma. E a proximidade dos restaurantes puxa a venda do cigarro. Todo o dia de pé, correndo de carro em carro, de assobio em apitadela, lá vai satisfazendo as vontades nicotineiras de cada cidadão. São os brancos quem mais compra. E ele até já tem cliente certo e fiel. O pai Júlio é conhecido na praça e respeitado pelos seus cabelos raiados de branco.

Os risos das crianças irmãs começam a ouvir-se. O irmão José está sentado na cadeira plástica a descansar as pernas. O irmão Joaquim está lá para dentro, a pensar na vida.

“Inchicáne”, cumprimenta o mais velho, entre golos de refresco.

A resposta das mulheres é sumida. Descarregando o fardo da banca, mãe e filha correm a preparar o lume para a janta. O arroz está sempre presente e o caril é apurado. Desta vez é a mãe Janete quem põe a mão na massa. Para Joana, sabe melhor.

Sentados no chão da sala, em “sangu” de palha, comem entre silêncios e histórias do dia. As crianças estão cansadas e adormecem com o estômago cheio. Mãe e filha fazem a lide e estoiradas caiem nos seus colchões. Os putos dormem ali mesmo.

O irmão José faz as contas. É sempre ele que, na ausência do pai Júlio e com a escolaridade obrigatória, faz o balanço do dia. José, mais Joaquim, mais Joana, mais Janete e menos o pai. Não foi má esta sexta feira, mas para o sonho sem chinelo, ainda falta. Dá, mas não sobra. E já é assim há muito tempo.

Cansado, deita-se no colchão que sobra e adormece.

O bairro dorme quando o pai Júlio entra em casa. A janta ainda está quente.
Amanhã é sábado. Dia grande para o negocio. Mas também dia de feira e calamidades. As mulheres querem sair e as crianças exigem a sua presença. Ser pai em Moçambique é ser ausente, mas Júlio tenta ser diferente. O seu sonho era ter aquelas botas mágicas do Ogre. Com uma só passada estava em casa e com outra no cruzamento. O tempo perdido no caminho seria passado com os filhos.  

Mais um sonho sem chinelo. 

CSD

Comentários

  1. Penso que a melhor forma de partilhar é dar-mos a amar o que amamos.

    Um ano com muitos contos.

    Beijocas

    ADRI

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  2. A felicidade surpreende e existe onde menos se espera. Está ao alcance de umas botas...
    Literatura da boa, continue a história desta familia e contribua para a felicidade dos seus seguidores.

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  3. A amizade é semelhante a um bom café: Uma vez frio, não se aquece sem perder bastante do primitivo sabor.
    Quando estamos com um amigo, nem estamos sós nem somos dois.
    Beijos e Continua.....

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